CONHECENDO O DEMO

Anônimo. The Devil in Britain and America, 1896. Wellcome Collection.

O Demo cruzou seu caminho? Bem-vindo/a. Caso você tenha caído aqui por acaso, note que não somos um culto satânico, mas apenas um laboratório de pesquisa um pouco mais sombrio que os demais — isso porque nunca aceitamos como simplesmente dados as verdades e os valores estabelecidos. Atuamos nas áreas do design e das humanidades, e, portanto, nosso laboratório não contém provetas nem colônias. As ferramentas com as quais trabalhamos são eminentemente imateriais — com elas, procuramos compreender maneiras diversas de pensar e projetar, e pensar e projetar de novas maneiras. A seguir, apresentaremos nosso trabalho de modo um pouco mais detalhado, para ver então se conseguimos seduzi-lo/a para o lado do Demo. Talvez nem seja uma missão tão difícil: já não dizia São João que todo o mundo está no maligno?

O que fazemos

Somos um laboratório de pesquisa que atua no cruzamento das áreas do design e das humanidades, englobando aqui a filosofia, a história e a literatura — somos, assim, interdisciplinares (ou, como preferimos, indisciplinados). Boa parte do trabalho que fazemos é conceitual e especulativo, no sentido de que tentamos compreender certas ideias ou maneiras de pensar relacionadas ao projetar e refletir sobre quais seriam as consequências de aceitá-las. Veja que não questionamos se as ideias são verdadeiras, no sentido tradicional de saber se elas correspondem a uma suposta realidade objetiva. Acreditamos, com William James, que uma coisa é verdadeira apenas pelos mesmos motivos que nos levam a considerá-la verdadeira; ou, dizendo de outro modo, que algo só é verdadeiro segundo certos parâmetros, mas que, para pensar sobre os próprios parâmetros, não temos parâmetro algum. Isso não quer dizer que, para realizar certos trabalhos, não aceitemos determinados parâmetros, apenas que esses parâmetros nunca são tomados como absolutos e estão sempre em debate — são, como os entendemos, ficções!

Em termos mais práticos, é isto que fazemos: pesquisamos, escrevemos, editamos, publicamos, discutimos, criticamos, especulamos, ensinamos, projetamos… em resumo, nos dedicamos de modos diversos a passar adiante nossos esforços intelectuais. Mantemos um grupo de estudo semanal e, anualmente, promovemos um seminário, o “Encontro com o Demo”, no qual os membros do laboratório apresentam suas pesquisas em desenvolvimento. 

Por que o Demo?

Dissemos acima que nada é verdadeiro ou falso de maneira absoluta, mas apenas segundo certos parâmetros. O mesmo vale para o bem — nada é bom ou mau em si, mas somente segundo certos parâmetros, incluindo o Demo. Mesmo o demônio cristão foi considerado bom, por exemplo, pelos gnósticos ofitas, que reverenciavam a serpente do Éden como beneficiadora da humanidade. Ela nos teria oferecido o conhecimento do bem e do mal, negado pelo malvado demiurgo (o criador deste mundo, que podemos associar ao Deus judaico-cristão). Mas isso é o de menos, pois muitos dos atributos associados ao demônio foram absorvidos de divindades pagãs, e só passaram a ser considerados “maus” porque julgados pelos preconceitos cristãos. Em resumo: o Demo só se torna mau quando aderimos a valores que se pretendem absolutos. Ao nos filiarmos ao Demo e nos apropriarmos de seu nome, queremos evidenciar esse ponto. Nossa expectativa é que tal filiação crie um certo desconforto em nossos interlocutores, e leve ao questionamento da sobrevida dos valores cristãos em nosso senso comum. Os dogmáticos de plantão, de todo modo, provavelmente já abandonaram o texto na abertura, revoltados com nosso “satanismo”. Uma coisa que o Demo faz bem é botar os dogmáticos para correr. Mas, além desses motivos ligados aos sentimentos que a figura do demônio pode evocar, há também algumas razões mais conceituais pelas quais o Demo é particularmente adequado para nos representar. 

Pensando com o Demo

Três características do Demo nos interessam particularmente: (1) ele é uma afronta a tudo que se pretende absoluto e estabelecido de uma vez por todas, como o Deus, a Verdade, o Bem, o Belo; (2) ele age transgredindo todas as divisões ontológicas estabelecidas, sendo ao mesmo tempo físico, metafísico e psíquico, e no entanto nenhum dos três, pois torna nula a própria divisão; (3) ele não tem forma definida, sendo apresentado não apenas em uma variedade de formas, mas geralmente como híbridos bizarros misturando elementos humanos e não humanos; tampouco tem uma unidade, podendo ser chamado de legião, pois é muitos. Transformando isso em uma série de títulos, podemos chamar o Demo de desestabilizador do absoluto, achatador da realidade e dissolvedor de identidades — credenciais que o tornam particularmente adequado para representar o referencial teórico que informa o trabalho deste laboratório, cujas principais referências filosóficas são Friedrich Nietzsche e Bruno Latour.

Sendo um pouco mais didáticos, podemos transformar essas 3 características e títulos do Demo em 3 diretrizes gerais de pensamento: (1) Não pressupor outra situação que não a da imanência, da finitude e da parcialidade, que é a que sempre se apresenta. Nada tem um fundamento último, tudo é, em última instância, infundado. (2) Não pressupor que a realidade está subdividida em domínios — por que aceitaríamos divisões arbitrárias de antemão? Portanto, nunca perguntar de início se algo é mental ou material, físico ou metafísico, natural ou social, objetivo ou subjetivo etc. O importante é entender como os diferentes existentes se constroem e se costuram. (3) Não pressupor que as coisas possuem uma essência, algo que as define de uma vez por todas e, acima de tudo, não pressupor que essa suposta essência explicaria como ela atua — a identidade se define pela atuação, a atuação nunca pode se explicar pela identidade. 

E o design?

Se você é um aluno ou profissional do design e está (ainda) lendo isto, talvez esteja se perguntando o que raios tudo isso tem a ver com design. Bom, tudo depende de como entendemos design. Se entendermos o design de maneira restrita, como um campo profissional que precisa se diferenciar completamente da arte, da engenharia, da arquitetura (para não falar das humanidades!), e cuja disputa mais acirrada diz respeito a nomenclaturas como as de logomarca e logotipo ou à regulamentação da profissão, realmente nada aqui pode ser de interesse. Contudo, se compreendermos o design de modo mais geral, como atividade projetual (isto é, como dizendo respeito aos modos de prefiguração e de efetivação do prefigurado), a coisa muda de figura. Nesse sentido, nada impede que identifiquemos uma dimensão projetual em certo trabalho artístico, por exemplo, uma vez que há um processo por meio do qual o/a artista prefigura o que vai ser realizado e que ganhará o título de obra de arte.

Mas veja como essa primeira formulação simplificada levanta uma série de questões: como se dá essa prefiguração? Devemos supor que ela se ancora na consciência desse/a tal artista? Mas essa consciência também não foi construída de certa maneira, e até projetada por planejamentos familiares, médicos, publicitários, religiosos etc.? E esses planejamentos mesmos não são partes de projetos, sistemas políticos, de educação, saúde etc., que se ancoram em materialidades —  edifícios, livros, aparelhos? Em resumo: a consciência do projetista, tal como a obra projetada e os modos de projetar não são parte de uma rede mais ampla fora da qual a própria ideia de projeto não faz sentido? 

Não se trata aqui de um apelo por “contextualização”, mas de uma diluição da agência que desloca o foco do projetista, dos métodos e de parâmetros previamente instituídos do que seria um bom design para uma rede complexa que inclui tanto os elementos que costumamos chamar de “subjetivos” quanto aqueles que normalmente denominamos “objetivos”. Exceto, justamente, que, como indicado na seção anterior, não estamos mais partindo de divisões ontológicas arbitrárias, como essa entre “subjetivo” e “objetivo”…

Mas na prática, qual é a diferença?

As abordagens mais disseminadas de “design social” ou mesmo “design crítico” tendem a imaginar que o designer está o tempo todo lidando com um anjo e um demônio que, como em um desenho animado, perturbam sua consciência. O anjo representa uma abordagem projetual ancorada na ideia de bem-estar social, igualdade, justiça etc. e o demônio representa a força que supostamente se opõe à efetivação das utopias representadas pelo anjo: o dinheiro, o mercado, o capitalismo, o egoísmo, o modernismo, o neoliberalismo, o racionalismo etc. Evidentemente, o demônio assim imaginado não é o demônio que representa este laboratório (o Demo), mas apenas uma projeção negativa do anjo. Como no caso do demônio cristão, esse demônio “social” é apenas a outra face de um Bem que se pretende o único.

Do ponto de vista do Demo, tudo é ficção, e não faz sentido aderir dogmaticamente a nenhum ideário, seja o do mercado ou o do social, seja à ideia de progresso ou de revolução. Isso, claro, não quer dizer que o Demo nos leve a buscar qualquer tipo de neutralidade (que seria apenas outro ideal supostamente absoluto). Ao contrário, ele nos leva a atentar para as legiões que agem em nós e conosco e que orientam nosso projetar, pavimentando certo caminho ficcional, criativo, criador. Paradoxalmente, é somente na aceitação e afirmação de nosso papel como coator e coautor (junto a palavras, coisas, sistemas, animais, humanos vivos e mortos, valores e interpretações) que potencializamos nossa capacidade de agir, pois agir é sempre também ser agido, é sempre falar como o Demo: meu nome é legião, pois somos muitos.

Portanto, na prática, o Demo não indica um caminho definido que possa guiar a prática projetual, mas ajuda a construir certas competências que impactam fortemente nossa forma de projetar — por exemplo, a competência de identificar e potencializar a atuação dos muitos elementos que agem conosco, a de questionar os valores e as verdades das quais nos aproximamos, a de especular, imaginar possibilidades diversas, a de aceitar e afirmar a parcialidade de todo projetar, a de defender, ao projetar, valores e saberes parciais, a de procurar associados que possam fortalecer as ficções às quais nos filiamos.

Como participar

Se o Demo te seduziu, e se você quer se dedicar ao trabalho intelectual que descrevemos, entre em contato com a gente enviando uma mensagem para os coordenadores do laboratório, Daniel Portugal, no e-mail dportugal@esdi.uerj.br, e Wandyr Hagge, no e-mail wandyr@gmail.com. Todo ano, fazemos uma série de encontros que tem como objetivo introduzir novas pessoas a alguns textos que consideramos fundamentais e ao trabalho que desenvolvemos no laboratório. Mande uma mensagem se estiver interessada(o). Você pode estar cursando a graduação em qualquer área, já ter acabado a graduação e estar pensando em um mestrado ou estar em outra situação qualquer. Ingressar no laboratório diretamente em um mestrado ou doutorado também é possível. Outra excelente oportunidade para conhecer mais do nosso trabalho é o Encontro com o Demo, evento aberto que realizamos todo ano, no qual os integrantes do laboratório apresentam suas pesquisas em desenvolvimento.

Bibliografia básica

Como dito acima, fazemos em nosso grupo de estudo uma espécie de ciclo básico anual para receber novos integrantes. Nele, lemos os seguintes textos, que consideramos bibliografia básica para a abordagem do laboratório:

1. Flusser, V. Natural:mente (Caminhos, Vacas, A lua, Natural:mente).
2. Nietzsche, F. A verdade e a mentira no sentido extramoral.
3. Feyerabend, P. Adeus à razão (Notas sobre o relativismo).
4. Latour, B. Sobre o culto moderno dos deuses fatiches.